sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

A Vitrine


Já era mais de seis da tarde quando o velho e seu cachorro começaram a caminhar pela rua, quase deserta, naquele bairro distante. "Olá John", disse uma voz vinda de uma janela semi-aberta. O velho, sem ao menos desviar o olhar, acena com a cabeça, num sinal de positivo. Seu interesse era outro.

Há algum tempo atrás, John, o velho, deparou-se com aquela vitrine. Entre os muitos produtos expostos, comestíveis em geral, John encontrou aquilo que não imaginava. Como que um passe de mágica, seu cão também olhava fixamente para aquilo. Parecia que o desejo de seu dono ultrapassava a barreira do racional para o irracional.
Seu cão era o único que o entendia.

Por quase uma tarde toda, o velho ficou parado na frente daquela loja. Pessoas passavam por ele, entravam e saíam. Contudo, não o percebiam. O que o tranquilizava.
Apesar de sua condição social, as pessoas não diziam que John era um mendigo. Ele não se parecia com os demais moradores de rua da região. Ele se preocupava com sua higiene, vestimentas, não possuía barba, tampouco cabelos longos. Fato que o deixava participar da sociedade, e não era apenas um observador. Mas naquele momento, ele se transformava em um.
Observou o produto milhões de vezes. Prestou atenção em cada detalhe, e por vezes, fechava os olhos para se imaginar degustando-o, engolindo-o, e até mesmo o expelir se tornava atrativo em sua mente.
Imaginou cada segundo, até o cenário perfeito para o momento tão desejado.

O velho nunca havia tido uma televisão. Às vezes, parava em frente a uma loja que expunha suas grandes, médias e pequenas telas. Via o que estivesse passando. Numa dessas visitas, assistiu uma cena de um filme em que, um homem, sozinho, sentado num restaurante luxuoso, fazia sua refeição. Não. Não era aquela comida que John havia elegido como a comida mais desejada de sua vida. Apesar disso, o velho gostou da cena, e sempre que pensava naquela comida, se imaginava naquele lugar.

Passados alguns meses, o velho já havia conseguido algum dinheiro, ora pedindo, ora fazendo alguns pequenos trabalhos.
A comida parecia estar cada vez mais perto.

Até que um dia, numa bela noite de inverno, John e seu fiel cão encontravam-se parados na frente da vitrine. Um frio intenso cobria toda a cidade. Para John, isso não importava. Precisava vê-la para dormir em paz. "Um dia... um dia..." falava baixo, "um dia vou ter você".
John parou de falar no momento em que seu cão começou a latir, como que avisando que algo estava estranho.
Uma mulher se aproximava dos dois, olhando-os fixamente. "Sei que você vem aqui todas as noites. Por quê?", disse a jovem senhora. John não respondeu. Apontou o dedo para a vitrine e abaixou a cabeça.
A mulher, espantada, silenciou-se por alguns segundos. Em seguida, tirou algum dinheiro da bolsa e o entregou ao velho. John olhou para a mão que segurava as notas, pegou-as e, imediatamente, começou a contá-las. "Que falta de educação. Além de ganhar, quer saber o quanto", disse a mulher em tom agressivo, já andando pela rua. "Espere senhora", gritou o velho. "É que eu não preciso de tudo isso. Já ajuntei uma boa parte, e só me falta isso pra comprar a comida. A senhora pode levar de volta o resto. Muito obrigado."
A mulher, agora envergonhada, não pegou o dinheiro de princípio, mas logo aceitou a devolução e caminhou até se perder pela rua. O velho não acreditava naquilo. Seu cão pulava e latia, é claro que ele sabia o que estava acontecendo.

John andou rápido até a estação de trem. Com o trocado que tinha, banhou-se, penteou-se. Não iria degustar a comida vestindo roupas sujas, tampouco sem ter se banhado.
Após terminado seu ritual, o velho finalmente entrou pela loja, trêmulo, com a pernas bambas, envergonhado.
E foi ali mesmo, dentro daquela loja, que John realizou seu sonho. Degustou cada pedaço, cada mordida. Sim, era mais do que havia quisto.
John não queria sair de lá, porém, sabia que não tinha mais dinheiro pra permanecer na loja. Saiu, olhou para seu cão que, pacientemente o aguardava na entrada, e saiu caminhando pela rua.

Satisfeito, sim, embora uma pequena tristeza crescia em seu peito a medida que digeria sua comida. "Essa mendiguez que me deprime," pensou. "Esse sentimento mendigo, esse querer muito, esse desejar em excesso, essa luta diária," suspirou, "para que tudo se acabe em alguns minutos".

Seu maior desespero, na verdade, era seu inconsciente sabendo que, para ter aquele momento de volta, ele precisaria passar por tudo aquilo de novo, sem ao menos saber se um dia conseguiria.

Seu cão, andando atrás do velho, tinha a cabeça abaixada. Seu olhar melancólico certamente pedia à John que, da próxima vez, lembrasse de guardar um pedaço pra ele.

Published on July 02, 2008