terça-feira, 31 de dezembro de 2013

O Palco

Há tempos não escrevo desse jeito. Não digo em relação a forma de se escrever. Mas desse jeito que me sinto agora. Um ano começa agora, e há tantos desejos de tantas coisas. Há tantas pessoas felizes, sorrindo nas fotos, mostrando suas roupas brancas e novas. Há tanta festa e tantos fogos. E por quê? Por que ainda, nesse século, precisamos comer lentilhas, usar branco, pular ondas? O que é sorte senão o acaso?

Numa data criada simplesmente por uma questão de organização? Nessa necessidade do ser humano de ter o que contar. Números, meus amigos. São apenas números.
E eu, mesmo sabendo disso, mesmo acreditando que nada muda só porque o ano mudou, mesmo não dando a mínima pra todo esse circo, não contenho as lágrimas de ver fogos de artificio. Talvez, uma lembrança de uma infância sem cores. Talvez.
A vida não recomeça a cada ano.

O sono é um ensaio pra morte. Acordar é subir aos palcos todos os dias, abrir as cortinas e representar o papel que bem entender. Haverá públicos diferentes todos os dias, emoções, sabores e dissabores todos os dias. Todo dia é um recomeço. Chegará também o dia em que não haverá ninguém. Ou aquele em que você não vai querer se apresentar. Mas o palco, o público e as cortinas estarão lá. Até o dia em que ela não se abrir mais.

É por isso que todos os dias, eu me olho no espelho, penso no meu figurino, nas minhas falas e nos atores que subirão comigo. As cortinas estão sempre abertas.

Há tempos não subo nesse palco. Fico presa nos bastidores. Circulando seminua, esperando que vontade de atuar volte. Nao há público, não há atores contracenando. Mas as cortinas estão abertas. O palco vazio e silencioso.

Ninguém me espera, mas tudo me aguarda. Quando eu tiver coragem de novo. Por enquanto, eu só existo quando ninguém me olha.

O silêncio é a melhor forma de se mostrar respeito ao que é individual.

sábado, 28 de dezembro de 2013

SOBRE A RESIGNAÇÃO


Dentro daquela livraria vazia e quente eu tentava decidir qual livro me acompanharia ao longo da estrada mais longa da minha vida. Por medo, covardia, orgulho e respeito, eu havia escolhido continuar viva e enfrentar tudo de cabeça erguida. Peguei um livro que tratava da loucura sob a luz do Espiritismo e como qualquer ser humano desesperado, tentei rezar.
Tomei alguns comprimidos de Dramin e tentei começar a leitura. Fechei o livro na terceira linha. Sabia que se continuasse teria problemas. No silêncio daquela estrada escura, num misto de egocentrismo e automutilação, eu encerrei o ciclo mais longo da minha vida. Naquela noite, eu soube o que seria o resto da minha vida. Engoli meu choro como uma criança repreendida por um professor grosseiro, ganhei uma gastrite e passei quatro dias e três noites sem dormir. Entendendo vagarosamente que a chance única do amor havia passado. Na minha idade (acredito já ter passado da metade dessa vida), com o volume de informação e experiência, com o orgulho de alguém que já chegou ao inferno, com o brilho de quem já conheceu o céu, eu aceitei a minha situação. Eu aceitei que não nasci pro amor. Pois este é para todos, mas não de todos. Não é algo pra mim. E foi assim, em meio a leituras e filmes, séries e exposições, cafés e academia, sexo casual e postagens de blog que eu vivi esse ano. Sem amor. Sem paixão.
E sem paixão, não há muita esperança. Meu corpo adoeceu, juntamente com a minha solida carreira profissional. Recuei alguns passos, me organizei financeiramente e passei o segundo semestre do ano de férias. Sim. Seis meses de férias. Um sonho que eu realizei. Andei por toda a cidade, fotografei todos os lugares por onde andei, visitei quem eu quis visitar e dormi onde quis dormir. Acordei afogada em números desconhecidos, em ilustrações sem importância, em jardins de inverno românticos, em apartamentos quase vazios de móveis, mas cheios de alma. Acordei onde quis acordar. E fiquei até onde eu poderia e deveria ficar.
Meu dinheiro chegou ao fim no mesmo instante em que decidi qual caminho que minha vida profissional vai seguir daqui pra frente. E tudo se encaixa. Experimentei a liberdade. Vagueei e me escondi. Li, vi e revi. Dormi mil horas. Joguei. A liberdade é de todos, mas não para todos. Eu descobri nesse experimento que sim, a liberdade é pra mim.
Um ano de silêncio. Um ano de despedidas dolorosas. Um ano de reflexões. Um ano maldito. O primeiro ano da minha pós vida.
Sobrevivi. Afinal, ainda há livros para serem lidos, filmes para serem vistos e arte pra ser sentida. Estou correndo pra viver o mais intensamente possível. Como sempre fiz. Mas agora é sozinha e é pra valer. Falar do que eu quero agora é fácil. Não quero muita coisa. Bastam-me algumas horas de leitura por dia, algumas linhas de conversas interessantes, alguns cigarros e duas xícaras de café. Se não houver interlocutores, falo com minha mente, que já não se cala há anos. Se houver interlocutores, que sejam os eleitos pra me ensinarem algo novo. Fugirei do vazio, mais que dos meus próprios medos. Fugirei de pessoas vazias, contudo, procurarei em multidões o silêncio do meu espírito. Entrarei apenas onde for convidada. Serei grata pelas minhas próximas vidas àqueles que entenderem tudo isso e mesmo assim quiserem continuar do meu lado.
Procurarei ganhar carinhos gratuitos das crianças ao meu redor. Sorrisos de quem não espera nada de mim além de mim mesma. Nada como os bebês pra provarem que existe afinidade de almas, que existe o interesse no humano além do dinheiro.
Uma mochila surrada, música e estrada. Vou trabalhar pra comprar uma máquina fotográfica profissional e viajar. Isso ainda é a minha pequena e humilde missão de vida.
Abraços apertados. Desejos luxuriosos e secretos realizados. Lençóis sujos e olhos inchados.
Poesia. Arte, tecnologia, algumas futilidades, simplicidade e sexo de vez em quando.
Quero ainda essa determinação em mim. Que mesmo depois de ter descoberto o pior da vida, ainda sonho.  Sonho em fazer dessa merda toda ser a melhor coisa que eu poderia ter feito.

Resignação é também uma forma de ser feliz.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Os livros de 2013





Ressurreição - Machado de Assis
Sexo e Destino - Francisco Cândido Xavier / Waldo Vieira
Cinquenta Anos Depois - Francisco Cândido Xavier
O Martírio dos Suicidas - Almerindo Martins de Castro
Morte Súbita - JK Rowling
Antologia de Contos Extraordinários - Edgar Allan Poe
Saudades de quem está por vir - Alexandre Novaes
Madame Bovary - Gustave Flaubert
Os Vagabundos Iluminados - Jack Kerouac
The Bridget Jones Omnibus, The Singleton Years - Helen Fielding
Até o dia em que o cão morreu - Daniel Galera
Gai-Jin - James Clavell
Dentes Guardados - Daniel Galera
Cordilheira - Daniel Galera
O Grande Gatsby - F. Scott Fitzgerald 

domingo, 22 de dezembro de 2013

O Grande Gatsby



Ler pela primeira vez F. Scott Fitzgerald sabendo que a obra em suas mãos é a mais aclamada do autor e está na lista das 100 melhores obras da história da literatura é um misto de desafio, excitação e medo. No meu caso, acrescento um grau maior de excitação e ansiedade, uma vez que foi o único presente de Natal que ganhei esse ano, de mãos que me disseram: “você vai me conhecer.” Foram 12 horas praticamente ininterruptas de leitura ao som de uma coletânea de Duke Ellington, um maço de cigarros, dois litros de água e uma dor nas costas.
Uma obra-prima. Um clássico que leva o leitor dentro de círculos da aristocracia da década de 20, te faz passear por jardins que mais parecem pinturas de Monet e circular por festas esplendorosas onde os pequenos diálogos nos apresentam uma sociedade em construção. Tudo isso oferecido por um homem misterioso e cheio de segredos do passado.
Fitzgerald nos coloca como ouvintes de amigos de amigos de Jay Gatsby. Somos apenas sabedores do que estes sabem. Talvez tenha matado alguém, talvez tenha roubado, talvez tenha estudado em Oxford. E tudo se mistura na narrativa de Nick Carraway, um solitário vizinho que se torna íntimo de Gatsby e ao mesmo tempo, nos deixa a par de quem ele é.
Um sonhador, um homem que amou, ama e amará apenas uma única mulher em sua vida. Um homem que faz de tudo pra evitar problemas. Um jogador predestinado.
Agradeço imensamente as mãos e a delicadeza de quem me deu esse livro há uma semana e me proporcionou horas de prazer literário e físico. À minha intuição de nunca ter quisto assistir nenhuma das três produções cinematográficas feitas ao longo da história e à Fitzgerald, pela obra, claro.

Não recomendo a todos. Um clássico é pra poucos. Experimentem e me digam o que acharam.

Título: O Grande Gatsby
Autor: F. Scott Fitzgerald
Paginas: 204
Editora Geração

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Cordilheira

Segundo livro de Daniel Galera que li. Decidi lê-lo por três motivos: obviamente para conhecer melhor o autor que havia me encantado com “Até o dia em que o cão morreu”, depois porque o segundo livro dele que eu realmente gostaria de ler (Barba ensopada de sangue) às vezes aparece por R$ 9,90 em alguns sites de compras, então valeria a pena esperar. Terceiro e decisivo: estava procurando livros em uma grande livraria de São Paulo, quando uma linda garota se aproximou de mim e me deu todos os motivos pra ler Cordilheira. Olhei para um amigo que ouvia nossa conversa e decidi com uma troca de olhares o que eu queria. 
Era Cordilheira mesmo.
Um romance expresso. Vivido por Anita, uma mulher de quase 30, letrada, escritora, que tem um longo relacionamento interrompido por falta de sonhos em comum, que enfrenta a morte prematura de uma de suas melhores amigas e que foge pra Buenos Aires.
A história se mistura. Os personagens só existem porque há personagens que foram criados em livros por eles mesmos. No meio dessa confusão, conhecemos um grupo de amigos de Anita, todos escritores frustrados. Entre os amigos, Holden, personagem estranho, distante, jovem e de uma virilidade incomparável. Em poucos dias eles se envolvem e passam a viver uma vida louca, onde a realidade e a ficção se misturam no melhor estilo Dogma 95. Onde livros secretos são deixados na porta de sua casa em Buenos Aires, para que ambos pudessem se conhecer melhor. Descobriram a liberdade, o silêncio compartilhado e as ressacas. Mas principalmente, a Literatura. Essa discutida e apresentada como algo divino que poderia facilmente ser uma regra só podermos escrever com letra maiúscula. Para os apaixonados por Literatura, encontramos sentido nisso. Aos leitores de passagem, provavelmente uma grande besteira.
Conheci a literatura argentina através de Sabato. Consegui alguns argumentos em Cordilheira para entender que: pra se conhecer a essência literária de um país é preciso ler escritores de segunda linha. E foi isso que Daniel Galera tentou fazer. Na minha humilde opinião, de forma superficial diante do que ele poderia argumentar além do que fez.
De final previsível, contudo com uma delicadeza tamanha. Terminou como eu, que me identifiquei o tempo todo durante a leitura, gostaria que tivesse terminado. Estou satisfeita.
Indico para nós, pseudo escritores, leitores compulsivos, metidos a intelectuais e que vivem angustiados por alguma coisa que não sabem direito o que é. Ainda.

Título: Cordilheira
Autor: Daniel Galera
175 páginas

Companhia das Letras, 2008

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

A Câmera Rosa Retrô

Feliz da vida porque comprei essa câmera. Juntei dinheiro por tanto tempo e aqui está ela. Linda, cor de rosa retrô, com detalhes em verde. Do jeito que eu queria. Paguei caro, levando em consideração que o material parece de plástico. Mas não sei do que é.
Entrei no escritório e me sentei. Mais um dia, mais um dia. Não quero falar com ninguém hoje. Nunca quis falar com ninguém daqui. Ambiente machista, cheio de piadinhas estranhas que eu não entendo, mas rio pra não terem que me explicar. Me sinto alienígena aqui. Tudo bem. Ganho dinheiro aqui e compro minhas câmeras cor de rosa retrô.
Tirei minha primeira foto. Janela, rua, dia cinza. Engraçado como essas coisas manuais são mais intensas. Você tira a foto e pronto. Não sabe se está boa, se não está. Não tem como arrumar depois naquele programinha legal que a gente sempre baixa da Internet. Fica real, cru. Tirei a segunda foto da lata de lixo e pronto. Deixei-a na mesa, na minha frente. Pra que eu pudesse paquera-la o dia todo.
Na volta pra casa, vi uma criança linda brincando com um cão. Foto, claro. Poxa, a câmera travou. Primeiro filme, 12 poses e eu só consegui usar duas. Ou três, caso essa tenha saído.
- Moça, vim buscar minhas fotos. O meu recibo é numero 36.
- Um minuto, por favor. Aqui, doze fotos. Saiu só uma manchada.
- Não, são duas ou três. A máquina travou e eu não sei o que aconteceu.
- Não, são doze. Recibo 36. Tá aqui.
Paguei e saí da loja. Subi a rua e entrei num café pra olhar aquilo.
***
Entrei no escritório no dia seguinte e fui direto falar com meu diretor.
- Senhor Menezes, gostaria de mostrar uma coisa ao senhor, e gostaria muito que providências fossem tomadas.
Entreguei o pacote de fotos e esperei sua reação.
- O QUE É ISSO?
- Isso mesmo que o senhor está vendo, Senhor Menezes. Fotos de pênis. Muitos.
- E por que você acha que tenho que ver isso?
- Porque todos esses pênis pertencem aos funcionários do seu departamento. TODOS. Deixei minha câmera na mesa e o seu departamento inteiro teve a brilhante idéia de fotografar os próprios pênis. Até o safado do Juninho do almoxarifado. O único negro aqui do andar. Até ele teve a cara de pau de fotografar o próprio pênis. Agora eu sei como é o pênis do Juninho. O senhor imagina o que é isso pra mim?
Entreguei minha carta de demissão e deixei a sala. Olhei pra trás e vi o Senhor Menezes rindo e olhando para o Juninho.
***
- Alô?
- Me desculpa.
- Juninho, não foi culpa sua. Mas foi de muito mau gosto. Eu até achei engraçado, mas não tinha mais ‘clima’ pra trabalhar lá. Não era lugar pra mim.
- Eu não me toquei de que eu era o único negro de lá.
- Quantos foram demitidos com você?
- Só o Silva e o Janu.
- Por que eles?
- Porque fomos reconhecidos. Eu, pela cor. O Silva porque vacilou e saiu no canto da foto o cinto dele. O Janu porque já tinha dito que tinha vitiligo e que escondia de todo mundo.
- O manchado era do Janu?
- Era. Venha jantar em casa. Falei pra minha mulher do motivo da demissão e ela se sensibilizou com você. Quer pedir desculpas em nome da família. Essas coisas de mulher.
- Tudo bem, eu vou. Sempre quis conhecer suas filhas.

***
Enquanto tomávamos vinho antes do jantar eu a observava de longe. Alta, mais alta que eu, mulata, sorridente. Contava animada que ia desfilar na melhor escola de samba do bairro no ano que vem. Que ninguém acreditava que já tinha duas filhas. Mostrava a perna comprida, o que me causava certa inveja. Sempre quis ter pernas compridas.
Juninho botou as crianças na cama e nos serviu o jantar. Macarronada. Simples e boa. Abríamos a segunda garrafa enquanto Juninho ria de chorar da história dos pênis nas fotos. Todos nós ríamos. Juninho precisou ir ao banheiro pra fazer xixi de tanto que ria. Assim que virou as costas, Ângela pegou na minha mão. E piscou pra mim. Tirei a mão rapidamente debaixo da dela e fiz uma cara de ‘como assim?’
- Gente, eu preciso ir. Já está tarde. O jantar estava maravilhoso. Pedidos de desculpas aceitas.
(Risos)
- Esperamos que volte mais vezes.
Deixei a casa pensando em Ângela. Só em Ângela. Naquele momento já tinha até me esquecido do pinto do Juninho.
***
Na cama, nos olhávamos.
- Como você conseguiu me trazer pra cá? Tudo isso é tão novo pra mim. E o Juninho? Ele é meu amigo...
- Calma. Sei que tudo isso é novo pra você. Mas não é pra mim. Eu sei o que estou fazendo. E sei que você está gostando.
- Mas eu nunca...
- Shhhhh, me beija de novo.
***
Depois daquele beijo vieram outros e outros. Até o ponto em que nada mais importava na minha vida que aquele beijo. Fizemos as malas e fugimos de tudo.
Hoje, depois de um ano, encontramos Janu na fila do mercado. Ele olhou pra nós e esboçou um sorriso, que era um misto de preconceito e piedade.
Não por nós. Mas por Juninho. Por ter perdido sua mulher pra única bicha do escritório.
Escrevo nossa história enquanto ela olha pra foto do pinto do Juninho. A única coisa que ela trouxe na mudança.

- Dudu, você não vem dormir?


domingo, 8 de dezembro de 2013

Sem Nome

Ela acordou com uma vontade tremenda de gritar. Não havia tido um pesadelo, tampouco sentia alguma dor. Ela só queria gritar. Sem prazer e sem loucura. Ela queria o grito. Olhou para o teto, e viu uma fina luz entrando através das cortinas. O quarto ainda permanecia esfumaçado e o calor era quase que insuportável. Enxugou o suor na sua testa e abriu as cortinas, as janelas e finalmente, a porta. Aquele sufoco ainda não havia passado, embora o vento já entrasse com certa força no segundo andar daquela casa. O cheiro salgado, o barulho das ondas, o vazio no horizonte. E foi aí que ela gritou, gritou com todas as forças e usou todo o pouco ar dentro de seus pulmões.
Ele pulou da cama, trêmulo, assustado, com os olhos esbugalhados.
“O que houve, pelo amor de deus?”
“Nada”, ela respondeu, deixando um olhar parado e vazio por cima de seus ombros. Olhou para as próprias unhas e pensou em ir até a manicure da cidade pra ajeitar aquilo.
Ele, inconformado, jogou o cobertor longe, se vestiu e em menos de três minutos estava na porta do carro. Olhou pra cima, avistou-a na janela, ainda olhando pras unhas e disse, “vou embora, tenho coisas a fazer, volto mais tarde, te ligo antes de chegar, não se esquece de trazer tomates do mercado, passa no João e vê se chegou a encomenda de São Paulo, minha mãe vai te ligar pra combinar o jantar de domingo, Aninha está chegando na segunda. ” Arrancou com seu carro potente e não viu as lágrimas que rolavam discretamente nos olhos dela.
Não conseguiu lembrar-se de nada ao chegar à cidade. Sentou-se em uma praça, acendeu um cigarro e observou um pombo raquítico, doente, se rastejando pelo chão. Ficou com dó e deu um pouco de água ao bicho. A vontade de gritar voltara. A dor do vazio e da falsa solidão. De ter tantas vozes, tantos comandos e ninguém que a ouvisse de verdade. Só pessoas esperando que ela decidisse coisas. “Não é possível você não querer nada com nada.” Ouvia de todos os amigos que falsamente diziam se preocupar com ela. “Não é possível você ainda não ter se casado com ele. Tantos anos juntos, ele é tão bom pra você. Quer tanto um filho, uma cerimônia linda de casamento. Ele pode te ajudar em tanta coisa. Você que não é grata a Deus. Tem um noivo que todas queriam ter...”
Ouviu um carro passando por perto, rodeando a praça. Fingiu que não conheceu o carro, fingiu que não estava ali. “Não se esquece de passar no João, hein?”
Puta que o pariu. O João. Precisava passar no João pra ver se a porra da encomenda já chegou. O que era mesmo que ele havia encomendado?
***
“Você não parece ser daqui, menina”, disse ele olhando-a nos olhos.
“Não sou, na verdade não sou de lugar nenhum”, respondeu ela, aceitando um gole da cerveja dele. “Não sabia que aqui podia beber no meio do expediente”.
“Aqui eu posso, João não liga, João não liga pra nada” sorriu e bebeu o restante do copo que havia tirado das mãos dela.
“Cerveja ruim”. Pegou o pacote e deu de costas.
“Espere, tenho coisa melhor no meu quarto.” Fechou a porta a chaves e levou-a.
***
O corredor era longo e escuro. Havia muitas portas, uma do lado da outra. Sentia um cheiro estranho, uma mistura de desinfetante barato e cigarro. Por uma porta entreaberta, avistou duas crianças, sozinhas. Uma chorava e a outra dormia. Preferiu não pensar nos porquês daquela cena. Seguiu adiante, uma mulher baixinha e rechonchuda a olhava de cima a baixo, parada na porta do quarto. Cumprimentou o casal e perguntou se queriam ‘pograma’. Ignorou-a.
Ela contou dezoito portas até chegarem ao destino. Não por achar que um dia voltaria ali e precisaria guardar o quarto certo, mas pelo seu TOC. Contava tudo. Chegou um dia a contar quantos interruptores haviam dentro de uma pousada de vinte quartos.
“Entre, por favor.”
“Sou jovem demais, nunca passei por isso” disse ela tentando não parecer assustada.
Ele abriu uma mini geladeira que estava no canto do quarto e tirou uma garrafa marrom. “Tome essa, é melhor.”
Enquanto ela tomava aquela cerveja, que de melhor não tinha nada, ele acendeu seu cigarro estranho e deu quatro tragos, ininterruptos. Estendeu até ela e pegou a garrafa de sua mão.
“Você parece ser bem mais velho do que eu” perguntou e tragou.
“O que você quer aqui?” já embebedado e com uma vermelhidão em seus olhos pequenos.
“Aqui na cidade ou aqui no seu quarto?”
“Nos dois.”
“Na cidade eu ainda não sei, aqui eu quero uma cerveja melhor.”
“Você é daqui?”
“Sou.”
“Qual o seu nome?”
“E o seu?”
Olharam-se e antes de responderem, ele a pegou pelos braços e a encostou na janela de costas. Beijou sua nuca, deixou sua barba malfeita arranhar sua tatuagem e a comeu. Rapidamente. Ela, em silêncio durante todo o sexo, permaneceu ali, de vestido, com a calcinha arreada nos joelhos. Ainda em silêncio.
Saiu de trás dela e se deitou na cama. Acendeu um cigarro e bebeu um gole.
“Você não me beijou”.
“Sua boca é preciosa demais pra que eu a beije, menina. Agora se vá, passa lá no João, a encomenda está lá.”
***
Já era tarde quando ela voltou pra casa. Ele estava sentado diante da TV, descalço com os pés na mesa de centro. Olhou pra ela e a avistou com uma caixa de cor parda nas mãos. “Finalmente você voltou e que incrível você não ter se esquecido do que eu pedi dessa vez.” Sorriu ironicamente e pegou o pacote. “Se lembrou dos tomates? Aninha não come macarrão com molho de tomate enlatado.”
Puta que o pariu. Ela havia se esquecido dos tomates. “Pego amanhã cedo na feira, são mais frescos.” Fingiu ter optado em não trazer.
“Você é uma inútil mesmo. Não tem nada pra fazer o dia todo e não se lembra de passar no mercado e comprar os tomates. Minha mãe te ligou, mas você não atendeu. Inútil.” E foi se deitar. “Sem ao menos escovar os dentes”, ela pensou ao recolher o pacote da mesa e tirar os sapatos do caminho.
Foi aí que decidiu ir ao mercado. Era tarde, mas conhecia a senhora que cuidava da loja. Tocou a campainha e pediu um quilo de tomates frescos. Pagou a mais pelo incômodo e voltou pra casa.
Descascou todos os tomates, picou e cozinhou-os por uma hora. Deixou esfriar e colocou o molho numa vasilha de plástico com tampa. Amanhecia e ela, sentada com a caixa parda em uma das mãos e um cigarro em outra, pensava.
“Que cheiro é esse?” ele perguntava ao descer as escadas.
“Fiz uma surpresa. O molho do macarrão da Aninha já está pronto. Ah, liguei pra sua mãe, já marquei tudo. O quarto da Aninha já está pronto e arrumado” disse sorrindo, daquele jeito que uma criança sorri quando termina o dever de casa e o mostra à sua mãe.
“Tá ácido, você não botou um pouco de açúcar pra tirar isso?” disse assim que cuspiu o molho de sua boca na pia.
***
Contou dezoito portas e entrou sem bater. Em silêncio. Avistou seu corpo nu adormecido e ouviu sua respiração profunda. Tinha cheiro de cerveja em seu suor. Tirou sua bermuda velha e o chupou. Até que gozasse. Ele permanecia na mesma posição, já acordado e em silêncio.
Na TV, um canal local anunciava uma tragédia. Um rico empresário havia sido encontrado morto na cozinha, com sangue e molho de tomate espalhados por todo o lado. Uma vizinha dava depoimento, toda maquiada e pronta pra ajudar a polícia. “Eu ouvi a noiva dele, uma mocinha estranha, gritando na janela ontem cedo...”

“Pegou a 38 que eu coloquei na caixa parda?” disse ele, depois de alguns minutos olhando pra TV. 

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Até o dia em que o cão morreu


Um rapaz de 25 anos que mora sozinho num apartamento quase vazio me indicou esse livro. Indicou fervorosamente, dizendo que leu em duas horas. “É novo, tem cheiro de novo. É gente boa que apareceu por aqui.”
Li a sinopse e constatei que a história era de um rapaz, que mora sozinho num apartamento quase vazio. “Alter-ego”. Tudo bem. Gosto de conhecer mais profundamente meus amigos. Principalmente os mais estranhos.
E foi assim que conheci Daniel Galera. Um jovem escritor, consequência de um existencialismo que só fode a vida da gente.
“Até o dia em que o cão morreu” nos mostra inicialmente um escritor ‘filho’ de Lispector, pois a base da busca é a mesma que encontrei em Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres, e de Bukowski (sua bebedeira, sua gastrite e seu descaso com a vida).
Um livro perfeito pra essa nova geração de compartilhamentos facebookianos. Peneira idéias longamente discutidas, dissertadas e narradas por pensadores ao longo da literatura moderna e as vomita em um livrinho curto e simples que dá pra ler entre um joguinho e outro na internet.
Recomendo.


P.S. Ele não foi. 

domingo, 1 de dezembro de 2013

Hoje

Hoje, por mais tarde que ele levantasse, ainda era muito cedo.

Hoje, por mais abertos que fossem os espaços, tudo ainda era muito pressivo.

Hoje, por mais verossímeis que fossem os sonhos, tudo seria uma decepção.

Hoje, mesmo com uma tarde agradável, ele queria a noite.

Hoje, mesmo que tivesse tudo, nada lhe bastaria.

Hoje, se ele tivesse coragem, certamente morreria.

Texto de Marcelo Ramos