domingo, 8 de dezembro de 2013

Sem Nome

Ela acordou com uma vontade tremenda de gritar. Não havia tido um pesadelo, tampouco sentia alguma dor. Ela só queria gritar. Sem prazer e sem loucura. Ela queria o grito. Olhou para o teto, e viu uma fina luz entrando através das cortinas. O quarto ainda permanecia esfumaçado e o calor era quase que insuportável. Enxugou o suor na sua testa e abriu as cortinas, as janelas e finalmente, a porta. Aquele sufoco ainda não havia passado, embora o vento já entrasse com certa força no segundo andar daquela casa. O cheiro salgado, o barulho das ondas, o vazio no horizonte. E foi aí que ela gritou, gritou com todas as forças e usou todo o pouco ar dentro de seus pulmões.
Ele pulou da cama, trêmulo, assustado, com os olhos esbugalhados.
“O que houve, pelo amor de deus?”
“Nada”, ela respondeu, deixando um olhar parado e vazio por cima de seus ombros. Olhou para as próprias unhas e pensou em ir até a manicure da cidade pra ajeitar aquilo.
Ele, inconformado, jogou o cobertor longe, se vestiu e em menos de três minutos estava na porta do carro. Olhou pra cima, avistou-a na janela, ainda olhando pras unhas e disse, “vou embora, tenho coisas a fazer, volto mais tarde, te ligo antes de chegar, não se esquece de trazer tomates do mercado, passa no João e vê se chegou a encomenda de São Paulo, minha mãe vai te ligar pra combinar o jantar de domingo, Aninha está chegando na segunda. ” Arrancou com seu carro potente e não viu as lágrimas que rolavam discretamente nos olhos dela.
Não conseguiu lembrar-se de nada ao chegar à cidade. Sentou-se em uma praça, acendeu um cigarro e observou um pombo raquítico, doente, se rastejando pelo chão. Ficou com dó e deu um pouco de água ao bicho. A vontade de gritar voltara. A dor do vazio e da falsa solidão. De ter tantas vozes, tantos comandos e ninguém que a ouvisse de verdade. Só pessoas esperando que ela decidisse coisas. “Não é possível você não querer nada com nada.” Ouvia de todos os amigos que falsamente diziam se preocupar com ela. “Não é possível você ainda não ter se casado com ele. Tantos anos juntos, ele é tão bom pra você. Quer tanto um filho, uma cerimônia linda de casamento. Ele pode te ajudar em tanta coisa. Você que não é grata a Deus. Tem um noivo que todas queriam ter...”
Ouviu um carro passando por perto, rodeando a praça. Fingiu que não conheceu o carro, fingiu que não estava ali. “Não se esquece de passar no João, hein?”
Puta que o pariu. O João. Precisava passar no João pra ver se a porra da encomenda já chegou. O que era mesmo que ele havia encomendado?
***
“Você não parece ser daqui, menina”, disse ele olhando-a nos olhos.
“Não sou, na verdade não sou de lugar nenhum”, respondeu ela, aceitando um gole da cerveja dele. “Não sabia que aqui podia beber no meio do expediente”.
“Aqui eu posso, João não liga, João não liga pra nada” sorriu e bebeu o restante do copo que havia tirado das mãos dela.
“Cerveja ruim”. Pegou o pacote e deu de costas.
“Espere, tenho coisa melhor no meu quarto.” Fechou a porta a chaves e levou-a.
***
O corredor era longo e escuro. Havia muitas portas, uma do lado da outra. Sentia um cheiro estranho, uma mistura de desinfetante barato e cigarro. Por uma porta entreaberta, avistou duas crianças, sozinhas. Uma chorava e a outra dormia. Preferiu não pensar nos porquês daquela cena. Seguiu adiante, uma mulher baixinha e rechonchuda a olhava de cima a baixo, parada na porta do quarto. Cumprimentou o casal e perguntou se queriam ‘pograma’. Ignorou-a.
Ela contou dezoito portas até chegarem ao destino. Não por achar que um dia voltaria ali e precisaria guardar o quarto certo, mas pelo seu TOC. Contava tudo. Chegou um dia a contar quantos interruptores haviam dentro de uma pousada de vinte quartos.
“Entre, por favor.”
“Sou jovem demais, nunca passei por isso” disse ela tentando não parecer assustada.
Ele abriu uma mini geladeira que estava no canto do quarto e tirou uma garrafa marrom. “Tome essa, é melhor.”
Enquanto ela tomava aquela cerveja, que de melhor não tinha nada, ele acendeu seu cigarro estranho e deu quatro tragos, ininterruptos. Estendeu até ela e pegou a garrafa de sua mão.
“Você parece ser bem mais velho do que eu” perguntou e tragou.
“O que você quer aqui?” já embebedado e com uma vermelhidão em seus olhos pequenos.
“Aqui na cidade ou aqui no seu quarto?”
“Nos dois.”
“Na cidade eu ainda não sei, aqui eu quero uma cerveja melhor.”
“Você é daqui?”
“Sou.”
“Qual o seu nome?”
“E o seu?”
Olharam-se e antes de responderem, ele a pegou pelos braços e a encostou na janela de costas. Beijou sua nuca, deixou sua barba malfeita arranhar sua tatuagem e a comeu. Rapidamente. Ela, em silêncio durante todo o sexo, permaneceu ali, de vestido, com a calcinha arreada nos joelhos. Ainda em silêncio.
Saiu de trás dela e se deitou na cama. Acendeu um cigarro e bebeu um gole.
“Você não me beijou”.
“Sua boca é preciosa demais pra que eu a beije, menina. Agora se vá, passa lá no João, a encomenda está lá.”
***
Já era tarde quando ela voltou pra casa. Ele estava sentado diante da TV, descalço com os pés na mesa de centro. Olhou pra ela e a avistou com uma caixa de cor parda nas mãos. “Finalmente você voltou e que incrível você não ter se esquecido do que eu pedi dessa vez.” Sorriu ironicamente e pegou o pacote. “Se lembrou dos tomates? Aninha não come macarrão com molho de tomate enlatado.”
Puta que o pariu. Ela havia se esquecido dos tomates. “Pego amanhã cedo na feira, são mais frescos.” Fingiu ter optado em não trazer.
“Você é uma inútil mesmo. Não tem nada pra fazer o dia todo e não se lembra de passar no mercado e comprar os tomates. Minha mãe te ligou, mas você não atendeu. Inútil.” E foi se deitar. “Sem ao menos escovar os dentes”, ela pensou ao recolher o pacote da mesa e tirar os sapatos do caminho.
Foi aí que decidiu ir ao mercado. Era tarde, mas conhecia a senhora que cuidava da loja. Tocou a campainha e pediu um quilo de tomates frescos. Pagou a mais pelo incômodo e voltou pra casa.
Descascou todos os tomates, picou e cozinhou-os por uma hora. Deixou esfriar e colocou o molho numa vasilha de plástico com tampa. Amanhecia e ela, sentada com a caixa parda em uma das mãos e um cigarro em outra, pensava.
“Que cheiro é esse?” ele perguntava ao descer as escadas.
“Fiz uma surpresa. O molho do macarrão da Aninha já está pronto. Ah, liguei pra sua mãe, já marquei tudo. O quarto da Aninha já está pronto e arrumado” disse sorrindo, daquele jeito que uma criança sorri quando termina o dever de casa e o mostra à sua mãe.
“Tá ácido, você não botou um pouco de açúcar pra tirar isso?” disse assim que cuspiu o molho de sua boca na pia.
***
Contou dezoito portas e entrou sem bater. Em silêncio. Avistou seu corpo nu adormecido e ouviu sua respiração profunda. Tinha cheiro de cerveja em seu suor. Tirou sua bermuda velha e o chupou. Até que gozasse. Ele permanecia na mesma posição, já acordado e em silêncio.
Na TV, um canal local anunciava uma tragédia. Um rico empresário havia sido encontrado morto na cozinha, com sangue e molho de tomate espalhados por todo o lado. Uma vizinha dava depoimento, toda maquiada e pronta pra ajudar a polícia. “Eu ouvi a noiva dele, uma mocinha estranha, gritando na janela ontem cedo...”

“Pegou a 38 que eu coloquei na caixa parda?” disse ele, depois de alguns minutos olhando pra TV. 

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