Feliz da vida porque comprei essa câmera. Juntei dinheiro
por tanto tempo e aqui está ela. Linda, cor de rosa retrô, com detalhes em
verde. Do jeito que eu queria. Paguei caro, levando em consideração que o
material parece de plástico. Mas não sei do que é.
Entrei no escritório e me sentei. Mais um dia, mais um dia.
Não quero falar com ninguém hoje. Nunca quis falar com ninguém daqui. Ambiente machista,
cheio de piadinhas estranhas que eu não entendo, mas rio pra não terem que me
explicar. Me sinto alienígena aqui. Tudo bem. Ganho dinheiro aqui e compro
minhas câmeras cor de rosa retrô.
Tirei minha primeira foto. Janela, rua, dia cinza. Engraçado
como essas coisas manuais são mais intensas. Você tira a foto e pronto. Não
sabe se está boa, se não está. Não tem como arrumar depois naquele programinha
legal que a gente sempre baixa da Internet. Fica real, cru. Tirei a segunda foto
da lata de lixo e pronto. Deixei-a na mesa, na minha frente. Pra que eu pudesse
paquera-la o dia todo.
Na volta pra casa, vi uma criança linda brincando com um
cão. Foto, claro. Poxa, a câmera travou. Primeiro filme, 12 poses e eu só
consegui usar duas. Ou três, caso essa tenha saído.
- Moça, vim buscar minhas fotos.
O meu recibo é numero 36.
- Um minuto, por favor. Aqui, doze fotos. Saiu só uma
manchada.
- Não, são duas ou três. A máquina travou e eu não sei o que
aconteceu.
- Não, são doze. Recibo 36. Tá aqui.
Paguei e saí da loja. Subi a rua e entrei num café pra olhar
aquilo.
***
Entrei no escritório no dia seguinte e fui direto falar com
meu diretor.
- Senhor Menezes, gostaria de mostrar uma coisa ao senhor, e
gostaria muito que providências fossem tomadas.
Entreguei o pacote de fotos e esperei sua reação.
- O QUE É ISSO?
- Isso mesmo que o senhor está vendo, Senhor Menezes. Fotos
de pênis. Muitos.
- E por que você acha que tenho que ver isso?
- Porque todos esses pênis pertencem aos funcionários do seu
departamento. TODOS. Deixei minha câmera na mesa e o seu departamento inteiro
teve a brilhante idéia de fotografar os próprios pênis. Até o safado do Juninho
do almoxarifado. O único negro aqui do andar. Até ele teve a cara de pau de
fotografar o próprio pênis. Agora eu sei como é o pênis do Juninho. O senhor
imagina o que é isso pra mim?
Entreguei minha carta de demissão e deixei a sala. Olhei pra
trás e vi o Senhor Menezes rindo e olhando para o Juninho.
***
- Alô?
- Me desculpa.
- Juninho, não foi culpa sua. Mas foi de muito mau gosto. Eu
até achei engraçado, mas não tinha mais ‘clima’ pra trabalhar lá. Não era lugar
pra mim.
- Eu não me toquei de que eu era o único negro de lá.
- Quantos foram demitidos com você?
- Só o Silva e o Janu.
- Por que eles?
- Porque fomos reconhecidos. Eu, pela cor. O Silva porque
vacilou e saiu no canto da foto o cinto dele. O Janu porque já tinha dito que
tinha vitiligo e que escondia de todo mundo.
- O manchado era do Janu?
- Era. Venha jantar em casa. Falei pra minha mulher do motivo da
demissão e ela se sensibilizou com você. Quer pedir desculpas em nome da
família. Essas coisas de mulher.
- Tudo bem, eu vou. Sempre quis conhecer suas filhas.
***
Enquanto tomávamos vinho antes do jantar eu a observava de
longe. Alta, mais alta que eu, mulata, sorridente. Contava animada que ia
desfilar na melhor escola de samba do bairro no ano que vem. Que ninguém
acreditava que já tinha duas filhas. Mostrava a perna comprida, o que me
causava certa inveja. Sempre quis ter pernas compridas.
Juninho botou as crianças na cama e nos serviu o jantar.
Macarronada. Simples e boa. Abríamos a segunda garrafa enquanto Juninho ria de
chorar da história dos pênis nas fotos. Todos nós ríamos. Juninho precisou ir
ao banheiro pra fazer xixi de tanto que ria. Assim que virou as costas, Ângela
pegou na minha mão. E piscou pra mim. Tirei a mão rapidamente debaixo da dela e
fiz uma cara de ‘como assim?’
- Gente, eu preciso ir. Já está tarde. O jantar estava
maravilhoso. Pedidos de desculpas aceitas.
(Risos)
- Esperamos que volte mais vezes.
Deixei a casa pensando em Ângela. Só em Ângela. Naquele
momento já tinha até me esquecido do pinto do Juninho.
***
Na cama, nos olhávamos.
- Como você conseguiu me trazer pra cá? Tudo isso é tão novo
pra mim. E o Juninho? Ele é meu amigo...
- Calma. Sei que tudo isso é novo pra você. Mas não é pra
mim. Eu sei o que estou fazendo. E sei que você está gostando.
- Mas eu nunca...
- Shhhhh, me beija de novo.
***
Depois daquele beijo vieram outros e outros. Até o ponto em
que nada mais importava na minha vida que aquele beijo. Fizemos as malas e
fugimos de tudo.
Hoje, depois de um ano, encontramos Janu na fila do mercado.
Ele olhou pra nós e esboçou um sorriso, que era um misto de preconceito e
piedade.
Não por nós. Mas por Juninho. Por ter perdido sua mulher pra
única bicha do escritório.
Escrevo nossa história enquanto ela olha pra foto do pinto
do Juninho. A única coisa que ela trouxe na mudança.
- Dudu, você não vem dormir?
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